O psicólogo da Univeritas, André Novaes
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André Novaes: “Neste momento de confinamento há uma tendência de aumentar a agressividade e sentimentos como a raiva porque nossa liberdade foi restringida"

A quarentena determinada pelas autoridades governamentais, com a necessidade de isolamento social para o combate ao novo coronavírus , trouxe à tona uma realidade que era de certa forma invisível para a sociedade, mas muito presente do quintal para dentro das casas, especialmente no espaço entre quatro paredes: a violência contra a mulher e doméstica. Essa é a avaliação do coordenador do curso de Psicologia da Univeritas André Novaes , especialista em terapia cognitivo-comportamental para múltiplas necessidades terapêuticas. Esse tipo de comportamento do homem em relação à mulher não é novo, mas ficou cristalizado com a perda de emprego ou a adoção do trabalho home office de parte dos homens – agora em casa quase 24 horas por dia.

A identificação do crescimento da violência contra a mulher levou a prefeitura a lançar uma campanha em vídeo, neste mês, para que as vítimas e as pessoas no entorno delas denunciem os casos de violência vividos ou vistos. O problema é tão grave que Novaes classifica como um problema de saúde pública dos mais graves e que precisa de respostas. “A violência contra a mulher vem a cada dia sendo mais vista, isso não quer dizer que antes não havia, pois há tempos que a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitia alertas sobre violência destes âmbitos. Hoje em dia as mulheres têm ganhado mais voz e, portanto, os casos parecem mais evidentes. Este problema de saúde pública é grave, mas precisamos enxergá-los diante de várias óticas para melhores soluções”. 


O que mudou desde os primeiros alertas da OMS para os dias atuais foi que a obrigatoriedade do isolamento o convívio familiar aumentou em tempo e intensidade, gerando um número maior de agressões, descreve o psicólogo. Segundo ele, “neste momento de confinamento há uma tendência de aumentar a agressividade e sentimentos como a raiva , uma vez que nossa liberdade foi restringida sem opção de escolha”. A reação é a agressão ao outro por que há um entendimento no agressor de que a vítima é mais frágil e não poderia ou não conseguiria se defender.

Convivência

Os números ajudam a entender essa reação agressiva dentro dos lares do Brasil inteiro e, aqui, especificamente de Guarulhos’. De acordo com o Mapa da Violência contra a Mulher 2020 da cidade, de janeiro a abril deste ano, foram 2.197 registros de violência contra a mulher. Para se ter uma idéia do crescimento, no primeiro semestre inteiro de 2019 foram 3.970 casos e um ano antes, também no primeiro semestre, 4.068 episódios, informou a subsecretaria de Políticas para as Mulheres de Guarulhos . Os índices contêm informações sobre homicídio , lesão corporal , calúnia , difamação , ameaça, estupro e outros crimes .

O juiz de direito, Leandro Jorge Bittencourt Cano , titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca de Guarulhos afirma não ter identificado mudanças significativas em ações dessa natureza, “a média de distribuição mensal de inquéritos policiais manteve-se dentro dos parâmetros normais, ou seja, aproximadamente 130”.  O magistrado ressalta, porém, que esses números podem não representar o que de fato acontece nas relações entre homens e mulheres: “Isso não quer dizer que os dados representem uma realidade, pois o confinamento, o isolamento social e o distanciamento podem estar causando dificuldades às mulheres para acessar os serviços públicos. Não há dúvida de que a quarentena expôs a fragilidade das relações entre casais e familiares , forçando-os a conviverem juntos o tempo todo”.

Medo

Membro do ConselhoMunicipal de Políticas para as Mulheres de Guarulhos, a bacharel em Direito, pedagoga, psicopedagoga e mãe (de dois meninos) Débora Cavalcanti , sabe desde bem cedo como é conflituosa a relação entre homem e mulher e como o primeiro se vale de força física e psicológica para oprimir a segunda. A agressão que presenciou não foi dentro de casa, embora lembre de comportamentos machistas de familiares, aconteceu na vizinhança. Débora brincava com amiguinhas quando ouviu um grito de socorro. Abandonou a brincadeira e as outras crianças para socorrer quem precisava de ajuda. Encontrou uma vizinha que acabara de ser agredida , mas ao responder à socorrista-mirim a vítima disse estar tudo bem. “Não estava, né?”, pergunta e responde Débora com a mesma indignação.

“Sempre me incomodou o fato da mulher ser tratada com capacidades limitadas. Como falei, onde eu morava, muitas mulheres sofriam vários tipos de violência”, lembra Débora. Observava aquelas mulheres e aquelas relações abusivas e o que havia de semelhante entre elas: naqueles casos e talvez ainda em muitos, a falta de oportunidade, de conhecimento, medo de não conseguir sustentar sua família sozinha, medo do julgamento da sociedade, medo da cobrança dos familiares, medo de perder os filhos, medo...medo... medo...”

Comportamento

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Novaes explica que no Brasil ainda há predomínio da cultura patriarcal, originada por regimes escravocratas, essa doença social se espalha, e vai longe. “Pesquisas comprovam que nas Américas, por exemplo, este problema generalizado tem afetado de diferentes maneiras cada região, os índices vão de 14% das mulheres, com idade entre 15 e 49 anos em algum momento de suas vidas a até 60% da população feminina”. Esse modelo traz impactos à sociedade em geral e particularmente ao universo feminino oprimido, com custos financeiros ao contribuinte. “Importante ressaltar que as consequências deste cenário podem levar ao feminicídio, doenças associadas à infecção pelo HIV, suicídio e mortalidade materna, bem como lesões, infecções sexualmente transmissíveis (IST), gravidez indesejada, problemas na saúde sexual e reprodutiva e transtornos mentais, segundo dados da OMS”, descreve. 

O magistrado Leandro Cano diz que a função do Direito não é desagregar famílias, mas diante da violência as medidas protetivas são importantes
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O magistrado Leandro Cano diz que a função do Direito não é desagregar famílias, mas diante da violência as medidas protetivas são importantes


As agressões em boa parte das vezes são seguidas de pedido de desculpas por parte do agressor e promessa de mudança. Muitas mulheres acreditam na possibilidade de transformação da relação ou sentem medo da vida sozinha, das dificuldades financeiras e sociais que deverão enfrentar sem um companheiro, como descreve Débora. A Justiça , segundo o juiz Leandro Cano, tende a observar essas situações e circunstâncias para não interferir em demasia na vontade do casal. “A função do direito não é desagregar famílias”, diz. Casais que haviam rompido relações de forma abrupta conseguiram se reconciliar e superar os problemas que os afligia. “A função da Justiça é conseguir a paz e tranquilidade entre os envolvidos. Não é razoável que o magistrado deixe de considerar a vontade da mulher, pois a Lei 11.340/06 não teve a virtude de torná-la incapaz de gerir os atos de sua vida”, destaca.

Conscientização

Débora Cavalcanti é coordenadora de Políticas para as Mulheres
Arquivo Pessoal/Débora Cavalcanti

Para Débora Cavalcanti, as leis não têm sido suficientes para reduzir a violência contra a mulher: "precisamos de mais conscientização e mais oportunidades"

Quando a violência dirigida à mulher se restabelece, porém, é hora de atuar: “A Lei Maria da Penha tem por finalidade coibir e punir a violência doméstica”, explica o magistrado. Segundo ele, “o deferimento de medidas protetivas está condicionado à demonstração de sua efetiva urgência e necessidade em face de uma violência doméstica ou familiar atual ou iminente. Se houver provas que permitam aferir verossimilhança nas alegações e urgência das medidas solicitadas, impõe-se sua imediata definição e efetivação, de modo que seja paralisada a violação que esteja sendo praticada”.

Débora, que trabalha como aeroviária no aeroporto de Guarulhos e é professora de faculdade, afirma que estudou bastante. Além das graduações, fez seis especializações e “inúmeros cursos de extensão, muitos voltados à defesa das mulheres, inclusive cursos internacionais como defensora das mulheres”. Tudo isso, ela diz, é um “trauma” que a ajudou a buscar independência. Casada e divorciada duas vezes, está em seu segundo mandato no conselho. A seu ver, existem várias questões envolvidas na violência contra a mulher praticada por homens e que precisam ser resolvidas para uma vida mais harmônica.

De acordo com ela, as leis de proteção são importantes, mas é preciso haver um trabalho de educação mais profundo, atacar a raiz do problema que está na educação de meninos e meninas. “É uma construção conjunta, uma construção social, e que até hoje sinceramente, nada mudou no sentido de exposição à violência. O que mudou é que temos hoje uma legislação específica, a tipificação do crime de feminicídio e medidas protetivas”. Ela entende que sem conscientização de que a mulher não é um objeto, um bem, um produto de propriedade do homem não haverá transformação social.

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A seu ver essa construção de consciência inclui o homem, que também recebe muita pressão social. Além disso, salienta, as mulheres precisam de mais oportunidades, sem as quais a dependência do masculino se sobrepõe, e mais presença das autoridades quando solicitadas a atuar. Apesar da visibilidade que a violência contra a mulher ganhou nos últimos anos, sobretudo nesse período de quarentena “nada disso está sendo suficiente para minimizar ou sanar as violências, precisamos de mais, mais e mais, mais conscientização, mais oportunidades para as mulheres, mais orientações para os homens, mais acompanhamentos por parte das autoridades, mais efetividade nas medidas, menos política e mais humanidade, pois mulheres continuam morrendo, sofrendo por elas e pelos filhos, por elas e pela família, por elas e pela sociedade...isso é muito triste”, conclui. 

Patrulha Maria da Penha

Vale lembrar que Guarulhos tem a Subsecretaria de Políticas para as Mulheres , Delegacia de Defesa da Mulher , Defensoria Pública e Ministério Público, que atuam na defesa da mulher e combate a violência dirigida a ela. De acordo com órgão, o Centro de Referencia à Mulheres Vítima de Violência Doméstica, a Casa das Rosas, Margaridas e Betes seguem funcionando e atendendo às mulheres, seja por demanda espontânea ou casos encaminhados. Essas casas, oferecem assistência, acolhimento, proteção, cursos e palestras. Além disso, a Guarda Civil Municipal tem um destacamento específico para atendimento a mulheres vítimas de violência contra elas ou no ambiente familiar, conhecido como Patrulha Maria da Penha. A GCM atende pelo telefone 153. Outro telefone importante é o 180, atendimento do governo federal para casos de violência doméstica. A Polícia Militar também pode ser acionada pelo 190.

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